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Alba celebra os 220 anos da Revolta dos Búzios

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Alba celebra os 220 anos da Revolta dos Búzios

“Animai-vos Povo Bahiense que está para chegar o tempo em que todos seremos irmãos, o tempo em que todos seremos iguais”.

Este chamamento afixado em locais públicos na madrugada de 12 de agosto de 1798, inaugurou um dos mais importantes capítulos da história de luta pela liberdade, igualdade e fraternidade da história do País. E foi para reafirmar que a importância daquele episódio se estende até os dias atuais que a Assembleia Legislativa da Bahia realizou na tarde desta quinta-feira, 23, a sessão Especial 220 anos da Revolta dos Búzios – Nossos Heróis não Podem Ser Esquecidos.

“A tirania, o retrocesso, o conservadorismo, a redução dos recursos para a cultura, as restrição de direitos trabalhistas ameaçam tudo o que conquistamos com o sangue de nossos heróis. Os ideais de igualdade e liberdade dos nossos mártires devem servir de inspiração para fazermos a nossa Revolta dos Búzios do século 21”, bradou a proponente da sessão, deputada Fabíola Mansur.

Fabíola é autora de três projetos alusivos à preservação da memória de Luiz Gonzaga, Lucas Dantas, Manoel Faustino e João de Deus, os quatro mártires do movimento: a construção de um memorial na Assembleia Legislativa; a Comenda da Liberdade Revolta dos Búzios e o feriado estadual do dia 8 de novembro, data da execução dos revoltosos.

“A deputada Fabíola Mansur é a maior aliada do Olodum nesta difícil missão”, declarou o presidente do bloco afro, João Jorge Rodrigues, uma dos agentes culturais mais comprometidos em dar visibilidade à causa. “Vivemos numa terra com dois mil terreiros de candomblé, dois mil grupos de capoeira, 64 blocos afro. Se nós nos respeitássemos, os mártires de 1798 seriam tratados como Tiradentes, mas a Praça da Piedade continua abandonada, porque é lá que está o monumento aos nossos heróis”, desabafou Rodrigues, no discurso de encerramento.

Para o presidente da Fundação Pedro Calmon, Zulu Araújo, a Revolta de Búzios serve de alerta para o presente. “Se não tivermos força, garra e luta, estaremos arriscados a um retrocesso no país semelhante ao que tivemos há 220 anos. Temos quase um terço da população que acredita e defende conscientemente o racismo, o autoritarismo, a violência e a negação da liberdade e da cidadania como uma saída para o país. Não se derrota um contingente desse sem a política e sem a unidade dos que acreditam na democracia enquanto elemento estratégico”, destacou.

A mesa de abertura foi composta ainda pelas secretárias estaduais de promoção da igualdade, Fabya Reis, e de políticas para as Mulheres, Julieta Palmeira, pelo vereador de salvador, Silvio Humberto, pela Defensora Pública Eva Rodrigues e pela pedagoga Katia Melo. Os discursos foram entremeados por apresentações artísticas dos atores Dodi e Rafael Manga e do cantor Lazinho.

Durante o evento foi respeitado um minuto de silêncio em memória do professor Edivaldo Boaventura, falecido na véspera. A deputada Fabíola Mansur lembrou que foi durante a gestão de Boaventura à frente da secretaria de educação que foi introduzido o ensino da história da cultura afro-brasileira no ensino público.

HISTÓRIA

Objeto de estudo de uns poucos historiadores, sendo o professor Luiz Henrique Dias Tavares o que mais profundamente a ele se dedicou, a hoje mais popularmente chamada de Revolta dos Búzios ocorreu na última década do século XVIII, quando um grupo de pessoas preponderantemente da mais reduzida condição social intentou promover na Bahia um levante, visando libertar o Brasil-Colônia do jugo colonizador de Portugal sob o primado de múltiplas bandeiras, tais como independência da Capitania, implantação da república, abolição da escravatura, igualdade para todos, livre comércio com as nações do mundo, interrupção do vínculo com a Igreja do Vaticano, instituição do trabalho remunerado, melhoria do soldo militar e garantias para os plantadores de cana, fumo e mandioca, assim como para comerciantes.

No que se refere às ideias dos que estavam engajados no movimento de libertação, esse caldeirão efervescente pressupõe um enorme campo de procedimentos para obtenção de consenso em torno dos propósitos da intentada revolta. No entanto, desbaratado o movimento, o resultado de tão elevada aspiração ficou na história como exemplo máximo de sofrimento, crueldade e tragédia, recaindo as penas de enforcamento, seguido de esquartejamento e exposição de despojos fixados em postes e espalhados por vários pontos da cidade, sobre quatro dos envolvidos, dois deles soldados (Luiz Gonzaga das Virgens e Lucas Dantas do Amorim Torres) e dois artesãos (João de Deus do Nascimento, mestre alfaiate, e Manoel Faustino dos Santos Lira, então oficial alfaiate, mas ex-escravo), livrando-se da punição severa um quinto personagem, Luiz Pires, também artesão, por ter fugido sem deixar rastros.

Predominava neste específico momento baiano do século XVIII uma vasta rede de contatos interpessoais, envolvendo diversas camadas da população, escorados em múltiplas formas de transmissão direta de conteúdos e atitudes, que marcavam as relações pessoais. A estrutura social baiana da época assentava-se no patriarcalismo e na economia escrava, em que pontificavam os senhores de escravos, dos engenhos, das terras, das minas e dos currais de gado, e os chamados lavradores proprietários, que só se distinguiam dos senhores por não possuírem engenhos. Distribuía-se pelo intermédio, entre o senhor patriarcal e o escravo, um certo número de categorias: clero, magistrados, comerciantes, servidores da administração colonial, o chamado povo livre, os artesãos e os que ostentavam profissões qualificadas, além dos marginalizados da economia, como os mendigos, os desocupados e as prostitutas.

A educação formal se limitava ao ensino imposto e administrado pela Igreja, isto é, pelos jesuítas, reduzindo-se o estudo às disciplinas ministradas em suas escolas de “ler, escrever e contar”, a que poucos tinham acesso. Não havia universidade, tampouco bibliotecas, livrarias e imprensa devido às rigorosas proibições impostas pela Coroa portuguesa, desde o início da ocupação do território.

Segundo o historiador Luís Henrique Dias Tavares, os livros e outros escritos chegavam da Europa “nas cabeças, em baús amarrados, de jovens brasileiros estudantes em Coimbra”, enquanto Nelson Werneck Sodré, mirando o Brasil-Colônia como um todo, garantia que vinham de contrabando, totalmente às escondidas”.

E quanto à população? O professor Luiz Santos Vilhena situava a Capitania em menos de 200 mil habitantes, estimando 50 mil para o Recôncavo, menos de 60 mil para a Capital e menos de 100 mil para o resto da Capitania, o que praticamente iria se confirmar no censo realizado pelo Conde da Ponte, em 1807, com 51 mil para a Capital, compondo-se a população em 28% de brancos e 72% de pretos e pardos. Desses últimos sairia a esmagadora maioria dos participantes da planejada sedição, formada por escravos, artesãos, soldados e alforriados, mas também, embora poucos, por profissionais qualificados e religiosos, como o Padre Agostinho Gomes, que municiava com livros de sua biblioteca o ideário dos descontentes com o statu quo da Colônia então identificados com os princípios dos revolucionários franceses de 1789.

O essencial desses princípios reflete-se no poema revolucionário intitulado “Décimas sobre a Igualdade e Liberdade”, de criação atribuída a Salvador Pires de Carvalho e Albuquerque e, também, a Francisco Moniz Barreto, cuja existência o conjurado Manuel Faustino dos Santos Lira confirmou, em depoimento ao Juiz do Feito, repetindo oralmente o que havia decorado.

Na análise do movimento, baseada em fontes primárias e secundárias, ficou patente que todo o processo, toda a engrenagem conspiratória, claramente se consumira em atos de comunicação, havendo, no entanto, um momento de evolução nessas relações, determinante para a frustração e o fim trágico do movimento.

Além de mensagens por via oral ou escrita, os conjurados de 1798 estabeleceram formas de comunicação por sinais convencionais, com estruturas simbólicas que permitiam identificarem-se e comunicarem filiação ao movimento de revolta, protegidos por linguagem especial, tanto sonora quanto visual, com garantia de sigilo apoiada em simbologias próprias. Luís Henrique Dias Tavares registra que os conspiradores “conversavam, trocavam livros, organizavam banquetes pela liberdade” (…) “e se reconheciam por um búzio, uma espécie de distintivo ou senha”. Deveu-se ao uso de um búzio de Angola, às vezes até preso na lapela, como uma das formas de identificação de conjurados, no trânsito diário por pontos de afluência pública, a opção por historiadores de dar ao movimento a designação de Revolta dos Búzios, a preferida na atualidade, e não Revolução dos Alfaiates ou Conjuração Baiana.

Porém, o mais decisivo viria logo a seguir. Por meio de técnica mais aperfeiçoada do uso da escrita, os rebeldes repentinamente conseguiram superar as limitações da comunicação de círculo privado entre pessoas, evoluindo para um nível mais amplo – o da comunicação pública, de caráter unilateral e indeterminado, mesmo em manuscrito. Foi o que aconteceu a partir da madrugada de 12 de agosto de 1798, ao ser a população surpreendida com uma série de textos manuscritos, em número de dez, afixados em locais públicos, para onde convergia grande número de pessoas, tais como portas de igreja, os chamados cantos do peixe, os açougues e mercados outros, como os de frutas e legumes, cais do porto, portas de quartéis, tendas de alfaiates e oficinas de artesãos – onde se operava um cotidiano de forte afluência -, veiculando mensagens de conteúdo basicamente político-ideológico, em prol de uma reforma social, embora expresso de forma genérica.

Essa forma de difusão encontrada pelos conspiradores levou o historiador Braz do Amaral a afirmar que “a sua qualidade de comunicação formada no seio do povo indica como a propaganda das ideias ia ganhando terreno em todas as camadas sociais”. Representava inegavelmente um claro avanço, com a comunicação almejando um grau mais amplo de audiência.

A partir daí, deflagrada a perseguição, que já vinha sendo cogitada em razão de denúncias levadas ao governador e até à Coroa em Portugal, 49 foram os presos acusados de conspiração, 40 deles distribuídos por ofícios de baixa qualificação ou simplesmente escravos, instalando-se, por consequência, dois processos regidos por dois desembargadores fiéis à Corte: um, Manoel Pinto de Avelar Barbedo, então Ouvidor Geral do Crime, para investigação do que se passou a chamar “boletins sediciosos”, espalhados pela cidade, e outro, Francisco Sabino Álvares da Costa Pinto, voltado para a reunião de preparação para o levante, que fora convocada para o então chamado Dique do Desterro.

Quanto ao número de presos, há divergência entre os historiadores, mas parece ser Luiz Henrique Dias Tavares quem os situa com maior precisão, ao afirmar objetivamente em um de seus livros: “Onze escravos, seis soldados da tropa paga, cinco alfaiates, três oficiais militares, dois ourives, um pequeno negociante, um bordador, um pedreiro, um professor, um cirurgião e um carpinteiro. Esses foram os 33 homens processados por terem intentado articular um levante contra Portugal nos últimos anos do século XVIII. Centenas de pessoas estavam envolvidas nessa conspiração que recebeu vários nomes: Sedição de 1798, Conjuração Baiana, Revolução dos Alfaiates, Inconfidência Baiana, Levante de 1798 e Revolta dos Búzios”.

Aqui reside o ponto crucial: a presença desses boletins sediciosos, que foram, para os revolucionários, “o seu jornal, seu instrumento de divulgação de ideias e definições para um público mais amplo, que extrapolava o circuito da conspiração até aquele momento”.

Esses dez boletins sediciosos que se espalharam pela cidade podem ser tomados como a mais expressiva e inovadora forma de comunicação indireta utilizada pelos participantes da conjuração, desempenhando, para a época, o legítimo papel de jornal manuscrito, por meio do qual os conjurados difundiram as suas ideias e projetos de reforma social, com sublevação da ordem constituída, para um público indeterminado – chamado por eles de Povo Bahiense -, com características de comunicação pública, unilateral e indeterminada, como seriam pouco depois – no Brasil e na Bahia – os jornais impressos, até neles repetindo slogans, seja com vibração ética, “Ó vós Homens Cidadãos”, ou emotiva sugestão lírica, “a Liberdade é a doçura da vida”.

Motivos de uma das devassas que apuraram a conspiração, esses dez boletins sediciosos visavam, em essência, alcançar um público, uma coletividade de pessoas, em apoio do movimento. Dirigidos ao Povo Bahiense, cinco eram encabeçados como Aviso, um como Nota e quatro como Prelo, palavra que sintomaticamente fazia ressoar a técnica de impressão inaugurada por Gutemberg, que deu origem a toda a uma consagrada cultura editorial e gráfica no Ocidente. O primeiro deles traduzia-se numa entusiástica injeção de alento, ao dirigir-se a seu pretendido público: “Animai-vos Povo Bahiense que está para chegar o tempo em que todos seremos irmãos, o tempo em que todos seremos iguais”.

Como exemplo e evocação de um fato história, vale aqui ler um desses boletins lançados, na ocasião, em versão crítica de ortografia atualizada, um intitulado Aviso ao Povo Bahiense, que assim conclamava:

Ó vós Homens Cidadãos, ó vós Povos curvados e abandonados pelo Rei, pelos seus ministros.
Ó vós Povos que estais para serdes Livres, e para gozardes dos bons efeitos da Liberdade; Ó vós Povos que viveis flagelados com o pleno poder do Indigno coroado, esse mesmo Rei que vós criastes; esse mesmo rei tirano é quem se firma no trono para vos vexar, para vos roubar e para vos maltratar.
Homens, o tempo é chegado para a vossa Ressurreição, sim para ressuscitardes do abismo da escravidão, para levantardes a Sagrada Bandeira da Liberdade.
A liberdade consiste no estado feliz, no estado livre do abatimento; a liberdade é a doçura da vida, o descanso do homem com igual paralelo de uns para outros, finalmente a liberdade é o repouso, e bem-aventurança do mundo.
A França está cada vez mais exaltada, a Alemanha já lhe dobrou o joelho, Castela só aspira a sua aliança, Roma já vive anexa, o Pontífice já está abandonado, e desterrado; o rei da Prússia está preso pelo seu próprio povo: as nações do mundo todas têm seus olhos fixos na França, a liberdade é agradável para vós defenderdes a vossa Liberdade, o dia da nossa revolução, da nossa Liberdade e da nossa felicidade está para chegar, animai-vos que sereis felizes para sempre.

Na verdade, esses boletins constituíram-se no mais vigoroso instrumento de divulgação dos revolucionários de 1798, como nítida compensação à inexistência de meios impressos. O professor Luiz Henrique Dias Tavares crava justamente neste ponto. “Na época não existia imprensa no Brasil. A porta da colônia estava fechada a Gutemberg; Portugal, absolutista e clerical, proibia a menor publicação, a existência mesmo de um simples prelo. Por isso, a publicidade do movimento tinha de se fazer com boletins manuscritos – e tinha de se fazer, inclusive, porque os revolucionários estavam certos das adesões e apoios de homens de destaque, como eram alguns dos Cavalheiros da Luz”. Por isso é que esses chamados boletins sediciosos, como classificados pelo poder colonial e sua Justiça, que os revoltosos espalharam por locais de afluência pública na Bahia de 1798, embora manuscritos, devem ser reconhecidos, 220 anos depois, senão como ato legítimo de imprensa, em face das precariedades técnicas da época, mas como dela alvissareiro embrião e prova coletiva de vontade redentora e modernizadora, para o Brasil, ainda injustamente desconhecida. Como reforço, cito esta iluminada conclusão do historiador Luís Henrique Dias Tavares: “Sem ter, assim, grandes episódios, sem ter, assim, chegado a eclodir a revolução, é pelo seu corpo de ideias que o movimento baiano de 1798 alteia a sua importância em nossa História”.

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