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Sem eira nem beira: escolinha que revelou Isaquias tem estrutura precária

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Sem eira nem beira: escolinha que revelou Isaquias tem estrutura precária

A cozinha de onde deveriam sair os lanches virou depósito. A academia, de pouco mais de 10m², mais parece um ferro-velho. O bebedouro está seco, pois a água foi cortada a pedido do projeto, que não poderia mais pagar a conta.

Com sede em bar doado pela prefeitura de Ubaitaba, projeto onde medalhista deu primeiras remadas tem barcos velhos, não tem água e cozinha que virou depósito

Chinelo vira joelheira e cabo de vassoura faz as vezes de remo. (Thierry Gozzer)

Na garagem, barcos ultrapassados e amontoados uns em cima dos outros. É assim, sem eira nem beira que se encontra a escolinha responsável por revelar o maior atleta do Brasil em uma única edição de Olimpíada. À beira do Rio das Contas, um antigo bar abandonado é a casa da canoagem em Ubaitaba, grande celeiro da modalidade no país. Dali saíram campeões brasileiros, pan-americanos, mundiais e Isaquias Queiroz, seu filho ilustre, maior expoente e inspiração para as novas gerações.

Canoagem em Ubaitaba (Foto: Thierry Gozzer)

Sem água e sem dinheiro para lanches, cozinha virou um depósito de remos e coletes (Foto: Thierry Gozzer)

Quem visita a sede da Associação Cacaueira de Canoagem, porém, custa a acreditar que o pequeno cômodo doado pela prefeitura da cidade do interior da Bahia seja o lugar que revelou o canoísta. Ali, o filho da Dona Dilma deu as primeiras remadas, aprendeu a modalidade e ganhou o mundo. Até 2010, quando mudou-se para São Paulo, Isaquias usava essas dependências, praticamente sem nenhuma estrutura. Após seis anos e muitas medalhas depois, a situação é ainda pior. É na precariedade de condições que obstinados baianos trabalham diariamente para garimpar ouro, prata e bronze em canoas e caiaques velhos, em um rio poluído, sem raia para os treinos e clamando por míseros R$ 600 mensais para subsistência.

No local não há livro de contabilidade. Pudera. Nenhum dinheiro entra na escolinha. Há seis anos, quando Camila Lima assumiu como presidente, eles tinham 30 barcos, todos ultrapassados. Hoje, contam com mais 25, mas nenhum deles é de fibra de carbono, melhor tecnologia do mercado. São de fibra de vidro. Os remos, velhos, volta e meia são consertados ali mesmo, na rua, por crianças e professores. Justiça seja feita, se a prefeitura de Ubaitaba não sustenta a escolinha, ao menos é a única que auxilia com algum material quando possível e envia funcionários para a manutenção dos barcos, além do pagamento de R$ 880 mensais para dois professores. Do governo estadual baiano eles não recebem verba. Nem do Ministério do Esporte ou de parceiros privados.

Sem eira nem beira: escolinha que revelou Isaquias tem estrutura precária

Professora e alunos colam remo quebrado no meio da rua em Ubaitaba (Foto: Thierry Gozzer)

– Eu não sei quanto a gente gasta por mês. Na verdade a gente não gasta nada. O que pagávamos antes era a água e a luz, que dava R$ 100 por mês. Os funcionários a prefeitura arca. Se tivesse um apoio mesmo, eu acredito que R$ 600 por mês ficaríamos satisfeitos. Faríamos a manutenção dos barcos. Hoje, falta até a joelheira, o bloco emborrachado para eles remarem. Estamos arrecadando R$ 200 para comprar o emborrachado, para fazer essa estrutura. Compramos no quilo e depois nós mesmos preparamos a joelheira para as crianças – explica a presidente Camila Lima, ex-canoísta.

Sem eira nem beira: escolinha que revelou Isaquias tem estrutura precária

SEM RAIA, SEM LANCHA E SEM LANCHE

A Associação Cacaueira de Canoagem de Ubaitaba foi fundada em 1985. Um dos pioneiros foi Jefferson Lacerda, primeiro brasileiro a disputar a modalidade em Olimpíada, em Barcelona 1992. Do município o trabalho se expandiu para Ubatã, cidade vizinha que revelou Erlon de Souza, medalhista ao lado de Isaquias, e também Itacaré. A ideia era criar rivalidade entre os atletas. Daquela época para agora, pouca coisa mudou. Durante 10 meses, entre 2005 e 2006, os núcleos receberam incentivos através do programa Segundo Tempo, do Ministério do Esporte. A fonte secou e só Ubaitaba segue com o trabalho, mas a duras penas. Nem lanche após os treinos eles têm.

Canoagem em Ubaitaba (Foto: Thierry Gozzer)

Musculação? Aparelhagem mais lembra um ferro-velho (Foto: Thierry Gozzer)

Não bastassem todas as dificuldades ainda em solo, no Rio das Contas as crianças e jovens ainda precisam encarar outros desafios. A água é poluída. Esgoto in natura ainda é despejado e o nível do rio caiu muito com a estiagem. As plantas aquáticas por vezes se enroscam nos barcos, atrapalhando os treinos. Também existem várias pedras pelo caminho. Por fim, não há uma raia oficial para os treinos. Eles remam se guiando por uma linha imaginária. Camila Lima, presidente e professora, não conta com uma lancha e precisa se esgoelar para passar as instruções às margens do rio. Quando os barcos viram com as crianças, elas mesmas se ajudam.

– É de grande importância ter uma raia. Isso faz diferença no treinamento. Sabemos da dificuldade que é, tem pedras no rio, teriam que fazer uma barragem. Tem todo um processo. Isso é uma coisa que até pensamos, mas fica distante, no sonho. Os barcos, queríamos barcos top de linha, de carbono. Uma lancha… Ter uma lancha para acompanhar os meninos seria ótimo. As vezes eles viram do caiaque ou da canoa e temos que gritar para os outros meninos darem suporte a eles, para ajudarem a subir de novo. Se tivesse uma lancha, era meio caminho andado. Aqui temos muitos que são o Isaquias Queiroz no futuro. Mas não pode desistir no primeiro obstáculo. Tem que fazer disso um estímulo – conta a professora.

IDA AO BRASILEIRO SOB RISCO

Com dois turnos de aulas, pela manhã e a tarde, a escolinha da Associação Cacaueira de Canoagem atende a 60 atletas. São 15 crianças da escolinha de 8h às 10h e mais 15 de 14h às 16h. Os outros são os jovens que treinam por conta própria e fazem exercícios de alongamento e musculação quase que sem orientação profissional adequada. Entre os dias 22 e 25 de setembro, a turma tem mais um desafio pela frente. Curitiba receberá a o Campeonato Brasileiro da modalidade. Com 32 atletas para viajar e mais quatro técnicos, a ida até o Sul ficou orçada em R$ 30 mil. No momento, eles não contam com nada em mãos, mas vão viajar mesmo assim.

– Aqui a gente ajuda como pode. Nos juntamos, cada um dá um pouco. A verdade é que nos acostumamos a não ter nada. E vamos continuar nos virando assim. Sempre foi assim. Para Isaquias e Erlon, as medalhas da Olimpíada vão ajudar, mas para esses meninos aqui eu duvido que mude alguma coisa. Depois que passar o oba oba da Olimpíada, vai continuar do jeito que está ou até pior. Nos acostumamos a revelar jovens assim e tenho certeza que outros vão surgir da mesma forma – diz Jefferson Lacerda, pioneiro da canoagem do Brasil em Olimpíada e “salvador” de Isaquias, quando o patrocinou no início da carreira com R$ 50 mensais para que ele não desistisse do esporte.

Os meninos que vão para a primeira participação em Campeonato Brasileiro ainda precisam se filiar à Confederação Brasileira de Canoagem. O valor de R$ 40 é alto para muitos. Alguns estão com pai e mãe desempregados e já trabalham na feira, como Jonathan Santos, de 11 anos e uma das revelações da categoria infantil na canoa. Jefferson Lacerda pagou a sua inscrição, mas a viagem para Curitiba vai sair por R$ 760 para cada aluno (R$ 380 de hospedagem e R$ 380 de alimentação). Dinheiro que Jonathan e seus pais já avisaram que não tem. A viagem será feita de ônibus, bancado pela secretaria de esportes da Bahia. Uma outra Van vai levar o restante das crianças e rebocar os barcos na carrocinha comprada pela Associação.

– Essas crianças já trabalham. Pegam carrego na feira para ajudar os pais. A maioria é de família bem humilde. Com o feito do Isaquias nas Olimpíadas, a tendência é encher mais de meninos. Todo mundo quer ser como ele. Muitas crianças não viajam por falta de recursos. Com as medalha de Isaquias, acredito que a prefeitura irá arcar com todos esses custos. Na quarta-feira temos uma reunião em Ubaitaba e esperamos ter boas notícias – diz a professora Camila, lembrando que para remar é preciso ter boas notas.

(Globo Esporte)

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