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Símbolos de resistência, quilombos preservam cultura negra em PE
Logo na entrada do distrito, uma imagem de Zumbi dos Palmares em azulejos recepciona quem chega. E, de certo modo, anuncia que ali se passaram episódios emblemáticos da nossa História.
No Quilombo Trigueiros, em Vicência, na Mata Norte de Pernambuco, os resquícios do tempo de escravidão estão impressos em cada ruela da comunidade, onde moram 367 famílias. No Brasil, a Fundação Palmares, ligada ao Ministério da Cultura, é o órgão responsável por formalizar a existência de quilombos e assessorá-los no acesso a políticas públicas de ingresso à cidadania.
Na definição da Fundação, “quilombolas são descendentes de africanos escravizados que mantêm tradições culturais, de subsistência e religiosas ao longo dos séculos”. O povoado de Trigueiros foi assim reconhecido em 2008. No Brasil, são 2.431 comunidades quilombolas. Em Pernambuco, há 130 atualmente. Outras dez estão em processo de reconhecimento no estado.
Muitas das mudanças realizadas ou em curso no Quilombo Trigueiros se devem a esse reconhecimento formal da Fundação Palmares. “A gente se achava diferente, mas não tinha essa ideia de quilombola. Toda comunidade tem seus costumes. Aqui, por exemplo, pode trazer a banda mais cara para tocar no São João, mas se não tiver uma palhoça e um sanfoneiro, nem adianta. No outro dia, o pessoal não estaria satisfeito”, explica a presidente da Associação Quilombola de Trigueiros, Edriane Barbosa.
Curiosamente, a sede da instituição funciona na antiga casa-grande do povoado. As iniciais do antigo senhor de engenho ainda cravadas no imóvel – JGCP, José Gomes da Cunha Pedrosa – mostram que a comunidade não nega suas memórias, mas deseja reescrever essa parte da história. “Quando aboliram a escravidão, ficamos escravos do dinheiro. Meu pai queria que eu estudasse e, ainda novinho, lembro o patrão falando: ‘Pra quê estudar? Pra cortar cana?’ Eu sentia cheiro de escravidão”, lembra o aposentado José Severino da Silva, 67. Seu avô era jagunço de senhor de engenho; o pai fazia trabalhos braçais.
Com o gradual desenvolvimento de Trigueiros, as heranças do período escravocrata vão desaparecendo. Seu Severino, por exemplo, que é mais conhecido por Goió, conta que a comunidade cresceu tanto que os cachorros precisam tomar cuidado ao dormir nas ruas, devido à quantidade de carros. Os três que ele tinha – Chaves, Chapolin e Chiquinha – morreram atropelados. O aposentado guarda quase nenhum ressentimento dos tempos de exploração: “Hoje, sou rico”. A casa onde vive com a mulher tem sala com televisão e cadeira de balanço, além de um quintal onde criam algumas galinhas.
Relato parecido tem Benedito José da Silva, 72, ou simplesmente Seu Dito. Trabalhou em engenhos de cana-de-açúcar por anos até resolver despender esforço em causa própria. Era final dos anos 1960. “Tive fé em Deus que nunca mais ia cavar sulco para ninguém”, lembra. Aprendeu a fazer balaios e ia ao Recife pelo menos uma vez na semana para tentar vendê-los a comerciantes do Centro de Abastecimento e Logística de Pernambuco (Ceasa). “Os primeiros que eu fiz eram meio ruins. Um cara lá pegou, olhou e disse que era uma bomba”, conta, bem humorado. Depois se aperfeiçoou na prática e ganhou a vida vendendo balaios até ano passado.
Quilombo urbano
Para dificultar sua localização e ainda recriar, de certa forma, as estruturas de convivência africanas, os quilombos se assentavam em locais distantes, geralmente cravados em áreas de mata ou floresta. O surgimento dessas comunidades muito está ligado à cultura açucareira. Entretanto, a Fundação Palmares também reconhece os chamados quilombos urbanos, localizados em capitais e grandes centros. No Brasil, há três desse tipo, um deles em Olinda.
A comunidade Portão do Gelo foi reconhecida como quilombo urbano, o único de Pernambuco, em 2006. Sua história é vinculada diretamente à religião, mais especificamente à Nação Xambá. Os cultos dessa tradição foram trazidos ao Recife pelo babalorixá Artur Rosendo nos anos 1920. Após seguidas perseguições às religiões de matrizes africanas, o terreiro, chamado Santa Bárbara, instalou-se definitivamente em Olinda, em 1951, no bairro de São Benedito. Ali, fruto da resistência da Nação Xambá, nasceu e se desenvolveu o Quilombo Portão do Gelo.
O babalorixá Ivo de Xambá é, atualmente, o responsável por preservar as tradições da comunidade. Para ele, a partir do momento em que se classifica uma comunidade como quilombola, o governo passa a reconhecer formalmente sua responsabilidade em levar políticas públicas àquele local. “Todas as pessoas que vieram a esse país vieram como imigrantes. Elas tiveram a opção de vir ou não. Nós não, nós fomos obrigados, porque viemos na condição de escravos. Não somos escravos, mas fomos escravizados, é bom que se diga. Então o governo tem por obrigação fazer esse reparo social com essas pessoas que vieram para um lugar que não queriam”, assevera.
Para preservar a identidade, memória e evolução do terreiro e da Nação Xambá em Pernambuco, foi criado o Memorial Severina Paraíso da Silva, nome de batismo de Mãe Biu, que reagrupou a família dispersada pela repressão dos anos 1930. No local, inaugurado em 2002, há fotos, pertences e vestimentas usadas pelas ialorixás da Nação. As limitações de tamanho e também de ordem financeira impedem que o espaço, localizado nos fundos do Terreiro Santa Bárbara, abrigue ainda mais itens.
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Na visão de Ivo, o senso de preservação das tradições Xambá faz com que o Portão do Gelo seja uma espécie de fortaleza para questões religiosas e sociais. Eles estão buscando, junto ao poder público, a realização de um censo dentro da comunidade para que se possa saber sua população exata, as principais demandas e prioridades. “Criar o quilombo não é só uma área de resistência, mas é fazer com que o governo faça intervenções para privilegiar aquilo que eles [quilombolas] não tiveram, que é uma educação de melhor qualidade, a questão profissional. Toda as benesses que o cidadão comum teve ao longo desse tempo e que essas pessoas não tiveram”, explica.
Legislação
A definição legal de quilombo só veio a ser formalizada por meio do Decreto 4.887, de 2003, que assim considera os remanescentes dessas comunidades: “Os grupos étnico-raciais, segundo os critérios de auto-atribuição, com trajetória histórica própria, dotados de relações territoriais específicas, com presunção de ancestralidade negra relacionada com a resistência à opressão histórica sofrida”. O próprio termo “quilombo”, que na legislação colonial era enquadrado como crime, sumiu da base legal brasileira durante o período republicano.
Segundo um documento da Secretaria Especial de Políticas de Promoção da Igualdade Racial (Seppir), vinculada à Presidência da República, o termo apenas veio a reaparecer na Constituição de 1988, como uma categoria de autodefinição. Por meio do artigo 68 da Constituição, finalmente se reconheceu aos remanescentes de quilombos o direito à propriedade definitiva das terras que ocupavam.
Por serem quilombolas, os moradores do Portão do Gelo, por exemplo, têm um cadastramento diferenciado no Bolsa Família. No Quilombo Trigueiros, também por meio do governo federal, estão sendo construídas 40 casas populares e outras 49 já foram autorizadas. “O quilombo hoje é, nada mais nada menos, essa fortaleza que não vai só proteger a questão social e religiosa do homem negro, mas também vai junto ao governo buscar mecanismos de melhoramento”, resume Ivo de Xambá. (G1)
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