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ENSAIOS E ENTRETENIMENTO

‘O mito de que o Brasil é um país liberal não é verdade’, afirma Wagner Moura

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A primeira parceria entre o diretor Karim Aïnouz e o ator Wagner Moura era há muito esperada por ambos. “Praia do Futuro”, que estreia nos cinemas do país nesta quinta (15), é um saldo positivo deste encontro de entregas.

Wagner Moura vive Donato em "Praia do Futuro" Foto: Divulgação

Wagner Moura vive Donato em “Praia do Futuro”
Foto: Divulgação

O filme narra a história do salva-vidas Donato (Wagner Moura) que, ao fracassar no resgate de um afogamento, conhece o alemão Konrad (Clemens Schick). Por conta da paixão que surge entre os dois, o cearense decide enterrar o passado e recomeçar uma nova vida em Berlim. Durante a pré-estreia em Salvador, Karim e Wagner conversaram com a reportagem do Bahia Notícias e comentaram sobre diversos temas da nova produção. Nesta entrevista, os dois expõem as suas visões sobre o processo de construção de “Praia do Futuro” e posicionam o significado do longa-metragem nas suas carreiras. Para Wagner Moura, a polêmica relação entre dois homens não deve ser o foco dos debates sobre o filme. Enquanto que para Karim Aïnouz, que já dirigiu trabalhos renomados como “Madame Satã” e “O Céu de Suely”, essa é mais uma aventura por um enredo com motivações autobiográficas. Confira as entrevistas abaixo:
1ª parte: Wagner Moura, ator
BN – “Praia do Futuro” aborda uma relação amorosa entre dois homens. Você acha que essa será a grande discussão despertada por esse roteiro?
Wagner Moura – Esse é um tema forte no filme, mas ele não pode ser resumido a isso. Eu acho que quando a gente começa a falar muito desse aspecto, dando ênfase, existem pontos perigosos. Rapidamente podemos cair numa superficialidade e afirmar: “ah, então esse é um filme gay”. O que é isso? O que é um filme hétero? O que é um filme gay?
BN – Como você define o enredo do longa? 
WM – Esse é um filme sobre pessoas: um cara que se apaixona por outro, abandona uma criança e vai morar na Alemanha. O fato de ele ser gay ou não, não deve ser um assunto. “Praia do Futuro” tem uma relação de amor entre dois caras que é super bonita. É claro que isso é muito relevante dentro da trama, mas o filme não é um romance. A mote da história é a vida de um herói que tem a sensação de estar vivendo uma vida que não é a sua. Quando ele perde um salvamento na praia, começa a se fragilizar e entra num processo para virar outra pessoa.
BN – A escolha de viver esse personagem é uma forma de se livrar do estigma do Capitão Nascimento (personagem do filme Tropa de Elite)? 
WM – Todo filme que faço alguém me pergunta sobre o Capitão Nascimento. Realmente não sei o que as pessoas esperam. É da natureza do ator fazer personagens diferentes. Aí sempre tem uma pessoa que pergunta: “e esse personagem é diferente?” Esses papéis são diferentes na medida em que as pessoas vivem histórias diversas em filmes distintos. Eu procuro personagem bom.
BN – O filme é recheado de silêncios e com poucos diálogos longos. Como é interpretar um personagem que não se apoia em tanto texto? 
WM – Isso é uma coisa muito bonita de se fazer. Para os atores, é ótimo. Eu, por exemplo, gosto muito de cortar texto. O texto vem e eu risco logo: “Não precisa dizer isso”. O cinema é um negócio de imagem. Mas, no caso do roteirista: como é expressar uma ideia? O cara tem que escrever. A tendência dele é colocar muito texto na boca dos personagens.
BN – Você acha que a direção do Karim Aïnouz favorece o trabalho do ator? 
WM – Conseguir o que Karim conseguiu é muito complicado. “Praia do Futuro” é um filme com apenas três personagens – não existem pessoas secundárias. Esses caras quase não falam e mesmo assim o espectador consegue compreender tudo pelas ações, pelo que eles fazem. Isso é um negócio muito sofisticado. Karim é um diretor que admiro muito. Ele consegue chegar a um lugar de complexidade – de poesia – com muita simplicidade e beleza.
BN – Como foi a preparação para o personagem? 
WM – Eu fiquei em Fortaleza, na Praia do Futuro, convivendo com os salva-vidas da região. Aquele mar é realmente muito perigoso. Existem ocorrências diariamente. Por isso, aqueles caras são muito bem treinados, além de casca grossa. Fiquei rodeado por um grupo de salva-vidas em um trabalho intensivo. Botaram pra “lenhar”.
BN – E a composição do sotaque cearense? 
WM – As pessoas acham que todos os nordestinos falam de maneira igual. Tenho muita raiva quando alguém vem para Bahia e começa a imitar o sotaque local de maneira cantada. E eu não queria que acontecesse isso com o pessoal de Fortaleza. Não queria caricaturar a forma deles se expressarem. Me preocupei em demonstrar que me preparei para fazer aquele papel.
BN – Você acha que o Brasil tem posicionamentos flexíveis quanto ao envolvimento de pessoas do mesmo sexo? 
WM – De um modo geral, este é um país conservador. O mito de que o Brasil é um país liberal não é uma verdade.
2ª parte: Karim Aïnouz, diretor
BN – Você procura deixar marcas pessoais nos seus filmes? 
Karim Aïnouz – Em todos os meus filmes eu tento não filtrar o que há de pessoal. É importante que isso esteja presente por uma razão simples: quando você fala, por exemplo, de sentimento – e cinema é isso – você tem que ter propriedade dele. E isso só acontece com a experiência de ter vivenciado tal emoção. Mas, nunca são autobiografias diretas. São sensações que você experimenta.
BN – O que há de autobiográfico em “Praia do Futuro”?
KA – Tem uma coisa no filme que é muito recorrente na minha vida. Saí de casa aos 17 anos, fui para o mundo. Meus pais me estimularam a isso. Então, eu conheço essa sensação de despedida que o Donato passa e ela me fez muito bem. Essa é a história de um personagem que vai embora para o mundo e nunca mais volta. No meu caso, eu voltei. No caso dele, não. Eu acho, então, que sempre há dados autobiográficos nos meus filmes. Esse é um deles. E isso é bonito.
BN – O filme fala exatamente sobre o quê? 
KA – Um filme, ao contrário do que os professores de roteiro dizem, tem que falar de várias coisas e não de uma coisa só. Se a gente tivesse que tentar resumir, “Praia do Futuro” fala de possibilidade de por vir, de futuro. Esse longa fala da possibilidade de você se reinventar em outro lugar, recomeçar a vida. Há a construção dessa sensação de que o futuro é algo bonito As partidas também são um tópico importante. São elas que te permitem mergulhar no futuro. Eu sei que parece um tanto abstrato. Mas é isso.
BN – Há uma relação afetiva com a Praia do Futuro em Fortaleza? 
KA – Quando eu fiz oito anos, minha mãe comprou uma casa num bairro que era muito perto da Praia do Futuro. E eu comecei a ir muito lá. Ali é a minha casa, é o meu berço. A Praia do Futuro é minha casa, como se fosse meu berço. Eu já tinha feito dois filmes lá e precisava voltar para filmar. Eu acho que um filme baiano faz isso muito bem: “Cidade Baixa” (filme do Sérgio). O diretor volta para filmar na Bahia, um lugar que ele conhece bem e que você vê que há carinho..A realização de “Praia do Futuro” é fruto de um sonho antigo meu que é filmar naquele lugar.  Então, Praia do Futuro é isso: a vontade de filmar num lugar que está dentro do meu coração.
BN – Como foi o processo de escolha dos atores?
KA – A escolha do ator sempre passa pela intuição. Eu aprendi a respeitar a minha. Eu escolho os meus atores pelo mistério que eles têm. Acho importante que você olhe para alguém e imagine coisas. E outra coisa é que não pode ter limite. Se tiver, eu estou fora. Cinema para mim é sempre um gesto de liberdade. Na relação com o ator é importante que exista confiança, respeito, mas que não tenha limite. E eu acho que todos os atores que eu trabalhei até hoje – pelo menos nos papéis principais – se entregam completamente. Essa entrega passa a decisão final de trabalhar ou não com um ator. Se você não consegue se renunciar totalmente para habitar a pele do outro, fica sem graça.
BN – Seus filmes sempre valorizam histórias pessoais. Por quê? 
KA – Eu gosto muito de gente. Me interesso muito pelos outros. Adoro escutar, muito mais do que falar. Sou fascinado com a experiência humana e tenho muita curiosidade sobre o outro. E acho que isso guia meu cinema. Minhas histórias vêm por conta dessa fascinação pelo ser humano e pelas diferentes facetas e possibilidades que a experiência humana tem.
BN – Como você define o cinema que você faz? 
KA – Cinema é uma arte subjetiva também. Não é só entretenimento. Pelo menos o cinema que me interessa fazer. Eu acho bonito porque é possível chegar no coração do espectador com mais propriedade quando você fala de sentimentos que você conhece. (Bahia Notícias)

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